segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O corvo e a mocinha, no Idéias&Livros, do Jornal do Brasil, 22 de agosto de 2009


O corvo e a mocinha, no Idéias&Livros, do Jornal do Brasil, 22 de agosto de 2009
(O título original era: "Ted Hughes e a Maldição de Heathcliff")

Ted Hughes: casamento com Sylvia Plath marcou a trajetória do poeta

Cassiano Viana, Jornal do Brasil

RIO - Infelizmente pouco se conhece no Brasil da obra de Ted Hughes, poeta laureado na Grã-Bretanha – instituição vista pelo resto do mundo como uma excentricidade, o detentor dessa distinção vitalícia recebe uma modesta remuneração anual para escrever poemas sobre as celebrações do Reino Unido – e considerado um dos maiores poetas britânicos do século 20, ao lado de T. S. Eliot, W. H. Auden e Seamus Heaney. Como costuma acontecer quando a biografia do artista inclui detalhes estrepitosos, Hughes tornou-se mais famoso por seu casamento (aqui não é possível usar “união”) com a americana Sylvia Plath, que durou cinco anos, de 1957 a 1962.

Restou muitas vezes um poeta reduzido a segundo plano e renegado por uma reputação de marido omisso, indiferente, com a fala de intelectual egocêntrico, arrogante, associada às fofocas sobre suas relações conjugais e extraconjugais (teve três mulheres, Sylvia, Assia Wevill e Carol Orchard ). Não foi de grande ajuda o fato de suas duas primeiras mulheres terem se matado. Além de Sylvia, morta um ano após a separação do casal, a segunda companheira, Assia, seis anos depois e pela mesma via – inalação de gás – matou-se, levando consigo a filha de 4 anos do casal, Shura. A sucessão de tragédias pessoais de Hughes se fechou este ano, quando, no dia 16 de março, Nicholas Hughes, seu filho com Sylvia, também cometeu suicídio, enforcando-se em sua casa no Alasca. Nicholas era biólogo e ensinava ciências do mar e da pesca na Universidade de Fairbanks.

Tradutor de Sêneca

Hughes, que completaria 79 anos este ano (morreu no dia 28 de outubro de 1998), produziu nada menos que 18 livros de poemas e cinco livros em prosa, traduções de Racine, Garcia Lorca e Sêneca, 16 livros infantis, além de ter organizado antologias de Emily Dickinson, da própria Sylvia Plath, Shakespeare e Coleridge. Em 2003, na Inglaterra, foi publicado pela Faber & Faber um volume de 1376 páginas (1030 poemas), com toda a sua produção poética. Os únicos volumes publicados no Brasil são as Birthday letters, as Cartas de aniversário traduzidas por Paulo Henriques Britto para a Record – uma espécie de pedido de desculpas/explicação/expurgo público; os infanto-juvenis O homem de ferro (pela Martins Fontes), O caçador de sonhos e O que é verdade? , ambos pela Companhia das Letras; e o volume de contos Dificuldades de um noivo (Record).

É impossível – a não ser para mitômanos e feministas de plantão – imaginar que um poeta como ele escreveria versos apenas confessionais, para exorcizar a relação com Sylvia ou sua vida pessoal. O filme estrelado por Gwyneth Paltrow (Sylvia – paixão além das palavras, de 2003) alimenta a imagem do poeta cafajeste e da mocinha apaixonada. Hughes acabou renegado pelas feministas – que, obviamente, partiram em defesa da lady Lazarus (como a própria Sylvia se apelida num de seus mais famosos poemas, falando das reiteradas tentativas de suicídio, iniciadas antes mesmo da presença de Hughes em sua vida). Como explicar que após a morte de Sylvia, Hughes tenha se tornado organizador e maior divulgador de seus poemas e diários? Culpa? Talvez.

Ann Skea, autora de Ted Hughes: the poetic quest e uma das mais dedicadas pesquisadoras da obra do poeta, observa que Hughes, filho de carpinteiro, nasceu em Yorkshire, norte da Inglaterra, mesmo lugar das irmãs Brontë e cenário do romance O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë. Viria daí a personalidade à la Heathcliff de Hughes – aquele que condena o espírito de Catherine, a mulher amada, a vagar pela terra e a não encontrar descanso, porque não suportaria continuar a viver sem ela por perto. Na verdade, aqui os papéis estariam invertidos, pois é ele que não conseguiu se livrar do fantasma da mulher.

Santuário de remorso

Ted Hughes – que teve seu primeiro livro, Hawk in the rain, publicado aos 27 anos – diria, numa carta a Aurélia, mãe de Sylvia Plath, que não queria ser perdoado ou transformado num santuário público de luto e remorso. “Mas, se há uma eternidade, estou amaldiçoado nela”, escreveu a um amigo. “Deixe as feministas fazerem o que quiserem, deixe as pessoas pensarem o que quiserem sobre mim, deixe os céus caírem, deixe os exércitos de apoio acadêmico de sua mãe me demolirem (...), não posso mais me trancar atrás desta porta de vidro por mais uma semana”, escreveu ao filho Nicholas, comentando a publicação das Birthday letters. Os trechos acima - de "Letters of Ted Hughes", editadas por Christopher Reid (Faber & Faber, 780 págs.), foram traduzidos pela jornalista e tradutora Marina Della Valle, que se ocupa, hoje, de uma dissertação de mestrado sobre o escritor.

Sylvia Plath descreveu o marido como alguém “com os bolsos recheados de horóscopos”. De fato, para Hughes o zodíaco importava. Quem sabe se havia levado em conta que, pela sinastria (técnica utilizada na astrologia para analisar os graus de afinidade e dificuldade no relacionamento entre duas pessoas), ele, do signo de Leão, tinha reduzidas possibilidades de um relacionamento não-destruidor com a escorpiana Sylvia.

Possivelmente tenha levado em conta seu zodíaco como pano de fundo para sua produção poética. Leão é associado na astrologia antiga com o corvo, animal noturno e solitário, que simbolizaria o lado obscuro da natureza humana, o mensageiro do vazio, do “grande mistério”. Na cultura dos índios americanos, a cor preta do corvo tem diversos significados, mas não simboliza o mal. O preto pode simbolizar a busca de respostas. Todas essas dimensões estão presentes em um de seus livros mais primorosos: Crow: from the life & songs of the crow, inédito no Brasil.

*Jornalista e tradutor

Disponível em: http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/08/21/e210823785.asp


DUAS LENDAS

I

Negro era o cego [1]
Negra era a língua
Coração negro
Fígado negro, pulmão negro
Incapaz de sorver a luz
Sangue negro em ruidoso túnel
Negro o intestino empacotado na fornalha
Negro também o músculo
Que luta para fugir da luz
Negros os nervos, negro o cérebro
De visões sepulcrais
Alma negra, a enorme gagueira
do choro que, inflado, não poderia
Pronunciar seus sóis.

II

Negra é a úmida cabeça da lontra, ereta
Negra é a pedra, mergulhada na espuma
Negra é a vesícula à espera sobre a cama de sangue
Negro é cada centímetro do globo-terrestre,
Ovo negro
Onde o sol e a lua alternam seus temperamentos
Para observar o corvo, negro arco-íris
Curvo em seu oco
Várias vezes oco
Em seu vôo

Notas:

[1] Algumas referências que encontrei em uma pesquisa rápida na internet [levando em consideração que esse é o primeiro texto do livro “Crow”]:
"A Japanese legends tells of how, long ago a monster was about to devour the sun. To prevent this, the rulers of heaven created the first crow, who flew into the monster’s mouth and choked him (I assume this crow had three legs, since the “crow in the sun” is supposed to have three legs, representing dawn, noon and dusk). Another story tells of how the first Japanese soccer emblemEmperor of Japan was travelling through the mountains and became lost. The sun-goddess sent a three-legged crow to guide him" http://wildink.wordpress.com/2007/01/22/the-three-legged-crow/

Outra referência interessante (em japonês):
烏 (karasu -> corvo) é um 鳥 (tori -> pássaro) sem 目 (me -> olho).

O poema original:

Two Legends/Black was the without eye/Black the within tongue/Black was the heart/Black the liver, black the lungs/Unable to suck in light/Black the blood in its loud tunnel/Black the bowels packed in furnace/Black too the muscles/Striving to pull out into the light/Black the nerves, black the brain/With its tombed visions/Black also the soul, the huge stammer/Of the cry that, welling, could not/Pronounce its sun.

II/Black is the wet otter's head, lifted./Black is the rock, plunging in foam/Black is the gall lying on the bed of the blood./Black is the earth-globe, one inch under,/An egg of blackness/
Where sun and moon alternate their weathers/To hatch a crow, a black rainbow/
Bent in emptiness/ over emptiness/But flying

A QUEDA

Quando o Corvo era branco decidiu que o sol reluzia demais.
Que resplandecia em demasia, que seu brilho era muito intenso.
E decidiu então atacá-lo e derrotá-lo.

Tinha sua força abundante e em brilho puro.
Afiou suas garras e aprumou sua fúria.
E apontou seu bico em direção ao centro do sol

Em seu íntimo, ria de si
E de seu ataque.

Seu grito de guerra fez tombar árvores subitamente envelhecidas,
Sombras achatadas.

Mas o sol brilhava –
Luzia –, e o Corvo retornava chamuscado e negro.

O Corvo abria sua boca, mas apenas cinzas saíam dela.

"Você, aí no alto", desafia,
"Onde o branco é negro e o negro é branco, venço eu."

Tradução dos poemas: Cassiano Viana

Anotação #4

Anotação #4 – O leão é feito de carneiros assimilados

O leão é feito de carneiros assimilados [1]. Não há obra absolutamente pura, não contaminada, mas sim a impossibilidade do novo, da existência de originalidade absoluta.
Todo tradutor é um perseguidor que busca, no labirinto dos significados, o encontro com a palavra, com o texto e, em alguns casos, consigo. Davi Arrigucci Jr, em o Escorpião Encalacrado, lembra a interpretação dada ao mito de Narciso por Paul Valéry (em Fragments du Narcysse). Nessa interpretação, o amor a si mesmo converte-se em ver a si mesmo, pensar a si mesmo, tornar-se consciente de si em uma experiência positiva de apropriação (“uma idéia roubada ou palavras pedidas de empréstimo”, segundo Silviano Santiago), recriação (“liberar a língua do cativeiro da obra por meio da recriação – essa é a tarefa do tradutor, segundo Walter Benjamin) e processo de aperfeiçoamento literário e formação da identidade (no caso da literatura, autoral).
Ana C, que buscava a cumplicidade – essa palavra-chave, em Emily Dickinson, Sylvia PLath e Katherine Mansfield, e também utilizava os verbetes-guia (notas de rodapé com estudos de vocabulário), é o primeiro exemplo que me ocorre.
Tradução é desdobramento e rejeitar as soluções mais fáceis.

[1] Le lion est fait de mouton assimile, Paul Valéry.

Anotação #3

Anotação #3 Tradutor: the writer next door

O ubíquo Ezra Pound adestra, em seu “ABC da Literatura” que toda afirmação geral é como um cheque emitido contra um banco – seu valor depende do que está lá para responder por ele. “Se o Sr. Rockefeller emite um cheque de um milhão de dólares, o cheque é bom. Se eu fizer o mesmo, é uma piada ou uma fraude, ele não tem nenhum valor”, informa EP. “O mesmo se aplica a cheques relativos ao conhecimento. Se Marcone diz alguma coisa a respeito de ondas curtas, isso significa algo”. “A referencia de um escritor é o seu ‘nome’. Depois de certo tempo, ele passa a ter crédito”.
Os precursores da poesia concreta no Brasil – Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari etc, com suas traduções de textos complexos como os Cantos, de Ezra Pound e o Finnegan’s Wake, de Joyce, o “Lance de Dados”, de Mallarmé, e suas formulações acerca da tradução poética buscavam – e alcançaram, esse fundo na conta, esse crédito que financiou suas transcriações e a firmeza do movimento concretista [e todo um catálogo fundamental da Perspectiva e as coleções Debates e Signos].
Levando em consideração a deixa de Borges – o autor enquanto “escritor anterior”, logo o tradutor seria um “escritor posterior”, hoje a informação do nome do tradutor é quase tão importante quanto aquele na capa do livro, coisa que deveria ser valorizada pelas revistas e suplementos (sempre que sou convidado a escrever uma resenha faço questão de indicar e até mesmo entrevistar, quando possível, o tradutor, pois, como diz Borges, ele conhece a obra melhor do que o autor, logo, o que diriam alguns críticos).
Já faz um bom tempo, compro livros pelo nome do tradutor (quando não há edição no original disponível, e/ou, quando sei que o texto traduzido pode representar o fio de algum labirinto).

Anotação #2

Anotação #2 – “I work in concentration”

A idéia do tradutor traidor nasce com a igreja e a necessidade de perpetuar ipsis litteris a bíblia; ou a um período de valorização exagerada (?) dos autores – para Borges, autor = “escritor anterior”, mais que os textos, quando o tradutor seria um mal necessário, se interrompendo entre o texto original e o leitor.

Em “Las dos maneras de traducir” (1926), Borges lembra que na tradução clássica importam menos os escritores que os textos. A literatura é anônima e de todos; os textos, rascunhos que admitem sempre uma correção [aqui no sentido de permitir várias interpretações].

Borges lembra que a personalidade dos seres humanos é essencialmente feita de momentos e como estes é algo mudável, sujeito à mudança, contraditório, pontual. Não existe nada capaz de definir a um individuo para sempre; somos uma construção parcial. O conceito de texto definitivo corresponderia à religião (enquanto dogma) e ao cansaço (criativo).

“Qual tradução é fiel? Todas, e nenhuma”, diz Borges.

Sobre as traduções de sua própria obra: “Ele [o tradutor] conhece o texto melhor que eu, que o escrevi apenas uma vez. Ele – que o leu e teve de traduzi-lo, pode explicá-lo com maior propriedade, pois trato de esquecer o texto logo que escrevo”.

Para Borges, as melhores traduções não são as que simplesmente restabelecem o significado ou as palavras do original, mas aquelas mais agradáveis de ler, as melhores escritas. “É preciso afirmar a figura do autor onde ela está firme – o texto original, e apagá-lo onde ela é confusa – a tradução”.

Preservados os limites da tradução, dentro do que Borges chamou de “infidelidade criadora”, a tradução pretende (note: verbo que significa também “fingir”) reproduzir uma emoção estética tão verossímil quanto o texto original: quanto mais literal (no sentido de mecânica) a tradução, maior a sua infidelidade.

Boris Schnaiderman, na apresentação das suas traduções de Maiakovski – este, considerados por muitos intraduzível, frisa que as dificuldades da tradução representam um desafio que deve ser enfrentado. “Se não encontramos correspondência exata entre o coloquial russo e a linguagem cotidiana de outros países, temos de procurar soluções que mais se aproximem desse ideal, e que possam comunicar não apenas o sentido de uma expressão, mas também o tom, a atmosfera, o conjunto da realidade de um texto”.

E ainda: “Pouco adiantaria transmitir apenas o conteúdo de seus poemas, pois traduções desse tipo tornaram-se responsáveis pela impressão que alguns leitores têm, em nosso meio, de que Maiakovski teria sido um poeta gritador e retórico, sem maiores contribuições à linguagem poética”. A tradução como recriação, segundo Schnaiderman, nesse caso, constitui o caminho da verdadeira fidelidade ao texto.

“I work in concentration”, dizia Ezra Pound, explicando que o método adequado de estudar literatura (creio que podemos usar o mesmo para a tradução) seria o dos biologistas: exame cuidadoso e objetivo da matéria, e continua comparação.

Anotação #1

Anotação #1 – Em primeiro lugar: coloque uma moeda sob a língua do cadáver, para pagar o tradutor pela viagem.

Traduzir: trasladar de uma língua para outra, transportar, transferir, verter (transbordar em significados). É também conduzir, no sentido de guiar, acompanhar, orientar, sempre em cortesia. Admirar: Experimentar sentimento de admiração por; Extasiar-se diante de; Ter ou sentir admiração a si mesmo; Ter ou sentir admiração recíproca. Logo, uma espécie de narcisismo?

Odorico Mendes (1799 – 1864) traduziu a Ilíada (sua tradução – a primeira da obra em português, é um marco da tradução criativa para=); Haroldo e Augusto de Campos (os poetas da transcriação), traduziram Ezra Pound, John Donne e Maiakovski; Cecília Meireles traduziu Virginia Woolf, Dickens e Rilke; Drummond traduziu Balzac, Proust, Molière e Garcia Lorca; Ivan Junqueira traduziu Proust, Borges, Dylan Thomas, T.S. Eliot e Baudelaire, Camus e Sheakespeare; José Paulo Paes traduziu Auden, Dickens, Rilke, Poe e Willian Carlos Williams; Leminski traduziu Bashô, John Fante e John Lennon; Ana Cristina César traduziu Sylvia Plath e Katherine Mansfield; Antonio Houaiss traduziu Joyce; Remy Gorga Filho traduziu Cortázar e Gabriel Garcia Marques; Modesto Carone traduziu Kafka.

[Para o escritor] Não seria a tradução uma forma de criar para si um background, uma estratégia de aproximação e convivência com autores e/ou livros essenciais que, ligados a seu nome e à sua própria obra, pudessem constituir uma espécie de cenário [panorama/teatro] para a sua produção pessoal. Traduzir pode ser também [quem sabe?], a possibilidade de entendimento entre tradutor e leitor. Leminski dizia que buscava na tradução seu próprio contentamento, acreditando que, a partir disso, poderia despertar o interesse e, por ventura, a alegria de algum leitor.