quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Anotação #5

Anotação #5 – Sobre os privilégios da longevidade, o impulso da tradução e traduções poéticas, arte-subversivas e não litero-subserviente

Algumas traduções demoram dias, meses, anos para serem solucionadas e mesmo assim há sempre a possibilidade de uma nova saída. “Uma das poucas vantagens da longevidade é a de poder reconfigurar conceitos e preconceitos, uma disposição que me fez reconciliar-me com poetas aparentemente tão distantes dos meus projetos juvenis de poesía como Rilke e Byron, por exemplo. Considero um privilegio ter sobrevivido para reavaliá-los e valorizá-los como merecem”, escreve Augusto de Campos em “Byron e Keats, Entreversos” (Editora Unicamp, 2009).
Levando em consideração que trata-se aqui de Lingua Viva, logo a existencia de uma tradução também não invalida uma posterior. “Sempre que tomei conhecimento prévio de textos traduzidos por Décio [Pignatari] e Haroldo [de Campos], tirei o time de campo, tal a excelencia de suas recriações. Não refazer o que já foi bem feito ou melor é para mim uma regra inteligente, embora não inflexivel, de ‘economía processual’. Uma ou outra infração a essa norma, não pressentida por mim, pode ter ocorrido aquí e ali. Tomo-as como reverberações de um mesmo impulso tradutório. E espero que o leitor assim as acolha, tirando quem sabe algum proveito dessas nossas eventuais ‘bi’ ou ‘triduções’, para usar uma expressão pignatariana. Têm elas, no fundo, análogos principios – traduções poéticas, arte-subversivas e não litero-subserviente -, o que favorece a coexistencia de diferentes interpretações dos mesmos textos”.
Lembro que, ao traduzir aquele “Este lado da verdade” (http://www.facebook.com/note.php?note_id=121764368527), do Dylan Thomas (já traduzido por Ivan Junqueira), superei o medo de traduzir um poema já traduzido.
Sobre subserviência, no artigo Translation and Creation (http://phbritto.org/?p=17), o Paulo Henriques Britto observa que a relação/oposição entre original/tradução, autor/tradutor é uma construção tão ideológica quanto a dicotomia senhor/escravo, colonizador/colonizado, em uma relação de hierarquia, subordinação e autoridade, como se o texto traduzido não tivesse (tanta) importancia frente ao texto original. O tradutor um escravo do texto/autor original, um ser colonizado por outra lingua.

Dois exemplos do trabalho de Augusto de Campos nesse livro, o primeiro a partir de um poema de Byron, o segundo, a partir de Keats.

I have not loved the world, nor the world me,
but let us part fair foes; I do believe,
though I have found them not, that there may be
words which are things, hopes which will not deceive,
and virtues which are merciful, or weave
snares for the failing: I would also deem
o'er others' griefs that some sincerely grieve;
that two, or one, are almost what they seem,
that goodness is no name, and happiness no dream.
Byron, Childe Harold

O mundo, eu não o amei, nem ele a mim,
Bons inimigos, vamos sem rancor.
Não as achei, mas creio que há, enfim,
Palavras que são coisas, vi a cor
Da esperança e cheguei mesmo a supor
Virtudes sem perjurio ou falsidade;
Nos prantos dos demais vislumbro dor
Em dois ou três, e penso, de verdade,
Que o bem pode existir e assim felicidade.

* * *

Heard melodies are sweet, but those unheard
Are sweeter; therefore, ye soft pipes, play on;
Not to the sensual ear, but, more endear'd,
Pipe to the spirit ditties of no tone:
Fair youth, beneath the trees, thou canst not leave
Thy song, nor ever can those trees be bare;
Bold Lover, never, never canst thou kiss,
Though winning near the goal—yet, do not grieve;
She cannot fade, though thou hast not thy bliss,
For ever wilt thou love, and she be fair!
Keats, Ode on a Grecian urn

A música seduz. Mas ainda é mais cara
Se não se ouve. Dai-nos, flautas, vosso tom;
Não para o ouvido. Dai-nos a canção mais rara,
O supremo saber da música sem som:
Joven cantor, não há como parar a dança,
A flor não murcha, a árvore não se desnuda;
Amante afoito, se o teu beijo não alcança
A amada meta, não sou eu quem te lamente:
Se não chegas ao fim, ela também não muda,
É sempre jovem e a amarás eternamente.

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

O corvo e a mocinha, no Idéias&Livros, do Jornal do Brasil, 22 de agosto de 2009


O corvo e a mocinha, no Idéias&Livros, do Jornal do Brasil, 22 de agosto de 2009
(O título original era: "Ted Hughes e a Maldição de Heathcliff")

Ted Hughes: casamento com Sylvia Plath marcou a trajetória do poeta

Cassiano Viana, Jornal do Brasil

RIO - Infelizmente pouco se conhece no Brasil da obra de Ted Hughes, poeta laureado na Grã-Bretanha – instituição vista pelo resto do mundo como uma excentricidade, o detentor dessa distinção vitalícia recebe uma modesta remuneração anual para escrever poemas sobre as celebrações do Reino Unido – e considerado um dos maiores poetas britânicos do século 20, ao lado de T. S. Eliot, W. H. Auden e Seamus Heaney. Como costuma acontecer quando a biografia do artista inclui detalhes estrepitosos, Hughes tornou-se mais famoso por seu casamento (aqui não é possível usar “união”) com a americana Sylvia Plath, que durou cinco anos, de 1957 a 1962.

Restou muitas vezes um poeta reduzido a segundo plano e renegado por uma reputação de marido omisso, indiferente, com a fala de intelectual egocêntrico, arrogante, associada às fofocas sobre suas relações conjugais e extraconjugais (teve três mulheres, Sylvia, Assia Wevill e Carol Orchard ). Não foi de grande ajuda o fato de suas duas primeiras mulheres terem se matado. Além de Sylvia, morta um ano após a separação do casal, a segunda companheira, Assia, seis anos depois e pela mesma via – inalação de gás – matou-se, levando consigo a filha de 4 anos do casal, Shura. A sucessão de tragédias pessoais de Hughes se fechou este ano, quando, no dia 16 de março, Nicholas Hughes, seu filho com Sylvia, também cometeu suicídio, enforcando-se em sua casa no Alasca. Nicholas era biólogo e ensinava ciências do mar e da pesca na Universidade de Fairbanks.

Tradutor de Sêneca

Hughes, que completaria 79 anos este ano (morreu no dia 28 de outubro de 1998), produziu nada menos que 18 livros de poemas e cinco livros em prosa, traduções de Racine, Garcia Lorca e Sêneca, 16 livros infantis, além de ter organizado antologias de Emily Dickinson, da própria Sylvia Plath, Shakespeare e Coleridge. Em 2003, na Inglaterra, foi publicado pela Faber & Faber um volume de 1376 páginas (1030 poemas), com toda a sua produção poética. Os únicos volumes publicados no Brasil são as Birthday letters, as Cartas de aniversário traduzidas por Paulo Henriques Britto para a Record – uma espécie de pedido de desculpas/explicação/expurgo público; os infanto-juvenis O homem de ferro (pela Martins Fontes), O caçador de sonhos e O que é verdade? , ambos pela Companhia das Letras; e o volume de contos Dificuldades de um noivo (Record).

É impossível – a não ser para mitômanos e feministas de plantão – imaginar que um poeta como ele escreveria versos apenas confessionais, para exorcizar a relação com Sylvia ou sua vida pessoal. O filme estrelado por Gwyneth Paltrow (Sylvia – paixão além das palavras, de 2003) alimenta a imagem do poeta cafajeste e da mocinha apaixonada. Hughes acabou renegado pelas feministas – que, obviamente, partiram em defesa da lady Lazarus (como a própria Sylvia se apelida num de seus mais famosos poemas, falando das reiteradas tentativas de suicídio, iniciadas antes mesmo da presença de Hughes em sua vida). Como explicar que após a morte de Sylvia, Hughes tenha se tornado organizador e maior divulgador de seus poemas e diários? Culpa? Talvez.

Ann Skea, autora de Ted Hughes: the poetic quest e uma das mais dedicadas pesquisadoras da obra do poeta, observa que Hughes, filho de carpinteiro, nasceu em Yorkshire, norte da Inglaterra, mesmo lugar das irmãs Brontë e cenário do romance O morro dos ventos uivantes, de Emily Brontë. Viria daí a personalidade à la Heathcliff de Hughes – aquele que condena o espírito de Catherine, a mulher amada, a vagar pela terra e a não encontrar descanso, porque não suportaria continuar a viver sem ela por perto. Na verdade, aqui os papéis estariam invertidos, pois é ele que não conseguiu se livrar do fantasma da mulher.

Santuário de remorso

Ted Hughes – que teve seu primeiro livro, Hawk in the rain, publicado aos 27 anos – diria, numa carta a Aurélia, mãe de Sylvia Plath, que não queria ser perdoado ou transformado num santuário público de luto e remorso. “Mas, se há uma eternidade, estou amaldiçoado nela”, escreveu a um amigo. “Deixe as feministas fazerem o que quiserem, deixe as pessoas pensarem o que quiserem sobre mim, deixe os céus caírem, deixe os exércitos de apoio acadêmico de sua mãe me demolirem (...), não posso mais me trancar atrás desta porta de vidro por mais uma semana”, escreveu ao filho Nicholas, comentando a publicação das Birthday letters. Os trechos acima - de "Letters of Ted Hughes", editadas por Christopher Reid (Faber & Faber, 780 págs.), foram traduzidos pela jornalista e tradutora Marina Della Valle, que se ocupa, hoje, de uma dissertação de mestrado sobre o escritor.

Sylvia Plath descreveu o marido como alguém “com os bolsos recheados de horóscopos”. De fato, para Hughes o zodíaco importava. Quem sabe se havia levado em conta que, pela sinastria (técnica utilizada na astrologia para analisar os graus de afinidade e dificuldade no relacionamento entre duas pessoas), ele, do signo de Leão, tinha reduzidas possibilidades de um relacionamento não-destruidor com a escorpiana Sylvia.

Possivelmente tenha levado em conta seu zodíaco como pano de fundo para sua produção poética. Leão é associado na astrologia antiga com o corvo, animal noturno e solitário, que simbolizaria o lado obscuro da natureza humana, o mensageiro do vazio, do “grande mistério”. Na cultura dos índios americanos, a cor preta do corvo tem diversos significados, mas não simboliza o mal. O preto pode simbolizar a busca de respostas. Todas essas dimensões estão presentes em um de seus livros mais primorosos: Crow: from the life & songs of the crow, inédito no Brasil.

*Jornalista e tradutor

Disponível em: http://jbonline.terra.com.br/pextra/2009/08/21/e210823785.asp


DUAS LENDAS

I

Negro era o cego [1]
Negra era a língua
Coração negro
Fígado negro, pulmão negro
Incapaz de sorver a luz
Sangue negro em ruidoso túnel
Negro o intestino empacotado na fornalha
Negro também o músculo
Que luta para fugir da luz
Negros os nervos, negro o cérebro
De visões sepulcrais
Alma negra, a enorme gagueira
do choro que, inflado, não poderia
Pronunciar seus sóis.

II

Negra é a úmida cabeça da lontra, ereta
Negra é a pedra, mergulhada na espuma
Negra é a vesícula à espera sobre a cama de sangue
Negro é cada centímetro do globo-terrestre,
Ovo negro
Onde o sol e a lua alternam seus temperamentos
Para observar o corvo, negro arco-íris
Curvo em seu oco
Várias vezes oco
Em seu vôo

Notas:

[1] Algumas referências que encontrei em uma pesquisa rápida na internet [levando em consideração que esse é o primeiro texto do livro “Crow”]:
"A Japanese legends tells of how, long ago a monster was about to devour the sun. To prevent this, the rulers of heaven created the first crow, who flew into the monster’s mouth and choked him (I assume this crow had three legs, since the “crow in the sun” is supposed to have three legs, representing dawn, noon and dusk). Another story tells of how the first Japanese soccer emblemEmperor of Japan was travelling through the mountains and became lost. The sun-goddess sent a three-legged crow to guide him" http://wildink.wordpress.com/2007/01/22/the-three-legged-crow/

Outra referência interessante (em japonês):
烏 (karasu -> corvo) é um 鳥 (tori -> pássaro) sem 目 (me -> olho).

O poema original:

Two Legends/Black was the without eye/Black the within tongue/Black was the heart/Black the liver, black the lungs/Unable to suck in light/Black the blood in its loud tunnel/Black the bowels packed in furnace/Black too the muscles/Striving to pull out into the light/Black the nerves, black the brain/With its tombed visions/Black also the soul, the huge stammer/Of the cry that, welling, could not/Pronounce its sun.

II/Black is the wet otter's head, lifted./Black is the rock, plunging in foam/Black is the gall lying on the bed of the blood./Black is the earth-globe, one inch under,/An egg of blackness/
Where sun and moon alternate their weathers/To hatch a crow, a black rainbow/
Bent in emptiness/ over emptiness/But flying

A QUEDA

Quando o Corvo era branco decidiu que o sol reluzia demais.
Que resplandecia em demasia, que seu brilho era muito intenso.
E decidiu então atacá-lo e derrotá-lo.

Tinha sua força abundante e em brilho puro.
Afiou suas garras e aprumou sua fúria.
E apontou seu bico em direção ao centro do sol

Em seu íntimo, ria de si
E de seu ataque.

Seu grito de guerra fez tombar árvores subitamente envelhecidas,
Sombras achatadas.

Mas o sol brilhava –
Luzia –, e o Corvo retornava chamuscado e negro.

O Corvo abria sua boca, mas apenas cinzas saíam dela.

"Você, aí no alto", desafia,
"Onde o branco é negro e o negro é branco, venço eu."

Tradução dos poemas: Cassiano Viana

Anotação #4

Anotação #4 – O leão é feito de carneiros assimilados

O leão é feito de carneiros assimilados [1]. Não há obra absolutamente pura, não contaminada, mas sim a impossibilidade do novo, da existência de originalidade absoluta.
Todo tradutor é um perseguidor que busca, no labirinto dos significados, o encontro com a palavra, com o texto e, em alguns casos, consigo. Davi Arrigucci Jr, em o Escorpião Encalacrado, lembra a interpretação dada ao mito de Narciso por Paul Valéry (em Fragments du Narcysse). Nessa interpretação, o amor a si mesmo converte-se em ver a si mesmo, pensar a si mesmo, tornar-se consciente de si em uma experiência positiva de apropriação (“uma idéia roubada ou palavras pedidas de empréstimo”, segundo Silviano Santiago), recriação (“liberar a língua do cativeiro da obra por meio da recriação – essa é a tarefa do tradutor, segundo Walter Benjamin) e processo de aperfeiçoamento literário e formação da identidade (no caso da literatura, autoral).
Ana C, que buscava a cumplicidade – essa palavra-chave, em Emily Dickinson, Sylvia PLath e Katherine Mansfield, e também utilizava os verbetes-guia (notas de rodapé com estudos de vocabulário), é o primeiro exemplo que me ocorre.
Tradução é desdobramento e rejeitar as soluções mais fáceis.

[1] Le lion est fait de mouton assimile, Paul Valéry.

Anotação #3

Anotação #3 Tradutor: the writer next door

O ubíquo Ezra Pound adestra, em seu “ABC da Literatura” que toda afirmação geral é como um cheque emitido contra um banco – seu valor depende do que está lá para responder por ele. “Se o Sr. Rockefeller emite um cheque de um milhão de dólares, o cheque é bom. Se eu fizer o mesmo, é uma piada ou uma fraude, ele não tem nenhum valor”, informa EP. “O mesmo se aplica a cheques relativos ao conhecimento. Se Marcone diz alguma coisa a respeito de ondas curtas, isso significa algo”. “A referencia de um escritor é o seu ‘nome’. Depois de certo tempo, ele passa a ter crédito”.
Os precursores da poesia concreta no Brasil – Augusto e Haroldo de Campos, Décio Pignatari etc, com suas traduções de textos complexos como os Cantos, de Ezra Pound e o Finnegan’s Wake, de Joyce, o “Lance de Dados”, de Mallarmé, e suas formulações acerca da tradução poética buscavam – e alcançaram, esse fundo na conta, esse crédito que financiou suas transcriações e a firmeza do movimento concretista [e todo um catálogo fundamental da Perspectiva e as coleções Debates e Signos].
Levando em consideração a deixa de Borges – o autor enquanto “escritor anterior”, logo o tradutor seria um “escritor posterior”, hoje a informação do nome do tradutor é quase tão importante quanto aquele na capa do livro, coisa que deveria ser valorizada pelas revistas e suplementos (sempre que sou convidado a escrever uma resenha faço questão de indicar e até mesmo entrevistar, quando possível, o tradutor, pois, como diz Borges, ele conhece a obra melhor do que o autor, logo, o que diriam alguns críticos).
Já faz um bom tempo, compro livros pelo nome do tradutor (quando não há edição no original disponível, e/ou, quando sei que o texto traduzido pode representar o fio de algum labirinto).

Anotação #2

Anotação #2 – “I work in concentration”

A idéia do tradutor traidor nasce com a igreja e a necessidade de perpetuar ipsis litteris a bíblia; ou a um período de valorização exagerada (?) dos autores – para Borges, autor = “escritor anterior”, mais que os textos, quando o tradutor seria um mal necessário, se interrompendo entre o texto original e o leitor.

Em “Las dos maneras de traducir” (1926), Borges lembra que na tradução clássica importam menos os escritores que os textos. A literatura é anônima e de todos; os textos, rascunhos que admitem sempre uma correção [aqui no sentido de permitir várias interpretações].

Borges lembra que a personalidade dos seres humanos é essencialmente feita de momentos e como estes é algo mudável, sujeito à mudança, contraditório, pontual. Não existe nada capaz de definir a um individuo para sempre; somos uma construção parcial. O conceito de texto definitivo corresponderia à religião (enquanto dogma) e ao cansaço (criativo).

“Qual tradução é fiel? Todas, e nenhuma”, diz Borges.

Sobre as traduções de sua própria obra: “Ele [o tradutor] conhece o texto melhor que eu, que o escrevi apenas uma vez. Ele – que o leu e teve de traduzi-lo, pode explicá-lo com maior propriedade, pois trato de esquecer o texto logo que escrevo”.

Para Borges, as melhores traduções não são as que simplesmente restabelecem o significado ou as palavras do original, mas aquelas mais agradáveis de ler, as melhores escritas. “É preciso afirmar a figura do autor onde ela está firme – o texto original, e apagá-lo onde ela é confusa – a tradução”.

Preservados os limites da tradução, dentro do que Borges chamou de “infidelidade criadora”, a tradução pretende (note: verbo que significa também “fingir”) reproduzir uma emoção estética tão verossímil quanto o texto original: quanto mais literal (no sentido de mecânica) a tradução, maior a sua infidelidade.

Boris Schnaiderman, na apresentação das suas traduções de Maiakovski – este, considerados por muitos intraduzível, frisa que as dificuldades da tradução representam um desafio que deve ser enfrentado. “Se não encontramos correspondência exata entre o coloquial russo e a linguagem cotidiana de outros países, temos de procurar soluções que mais se aproximem desse ideal, e que possam comunicar não apenas o sentido de uma expressão, mas também o tom, a atmosfera, o conjunto da realidade de um texto”.

E ainda: “Pouco adiantaria transmitir apenas o conteúdo de seus poemas, pois traduções desse tipo tornaram-se responsáveis pela impressão que alguns leitores têm, em nosso meio, de que Maiakovski teria sido um poeta gritador e retórico, sem maiores contribuições à linguagem poética”. A tradução como recriação, segundo Schnaiderman, nesse caso, constitui o caminho da verdadeira fidelidade ao texto.

“I work in concentration”, dizia Ezra Pound, explicando que o método adequado de estudar literatura (creio que podemos usar o mesmo para a tradução) seria o dos biologistas: exame cuidadoso e objetivo da matéria, e continua comparação.

Anotação #1

Anotação #1 – Em primeiro lugar: coloque uma moeda sob a língua do cadáver, para pagar o tradutor pela viagem.

Traduzir: trasladar de uma língua para outra, transportar, transferir, verter (transbordar em significados). É também conduzir, no sentido de guiar, acompanhar, orientar, sempre em cortesia. Admirar: Experimentar sentimento de admiração por; Extasiar-se diante de; Ter ou sentir admiração a si mesmo; Ter ou sentir admiração recíproca. Logo, uma espécie de narcisismo?

Odorico Mendes (1799 – 1864) traduziu a Ilíada (sua tradução – a primeira da obra em português, é um marco da tradução criativa para=); Haroldo e Augusto de Campos (os poetas da transcriação), traduziram Ezra Pound, John Donne e Maiakovski; Cecília Meireles traduziu Virginia Woolf, Dickens e Rilke; Drummond traduziu Balzac, Proust, Molière e Garcia Lorca; Ivan Junqueira traduziu Proust, Borges, Dylan Thomas, T.S. Eliot e Baudelaire, Camus e Sheakespeare; José Paulo Paes traduziu Auden, Dickens, Rilke, Poe e Willian Carlos Williams; Leminski traduziu Bashô, John Fante e John Lennon; Ana Cristina César traduziu Sylvia Plath e Katherine Mansfield; Antonio Houaiss traduziu Joyce; Remy Gorga Filho traduziu Cortázar e Gabriel Garcia Marques; Modesto Carone traduziu Kafka.

[Para o escritor] Não seria a tradução uma forma de criar para si um background, uma estratégia de aproximação e convivência com autores e/ou livros essenciais que, ligados a seu nome e à sua própria obra, pudessem constituir uma espécie de cenário [panorama/teatro] para a sua produção pessoal. Traduzir pode ser também [quem sabe?], a possibilidade de entendimento entre tradutor e leitor. Leminski dizia que buscava na tradução seu próprio contentamento, acreditando que, a partir disso, poderia despertar o interesse e, por ventura, a alegria de algum leitor.

sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

Enquanto caminhava uma noite_W. H. Auden


ENQUANTO CAMINHAVA UMA NOITE
W. H. Auden

Enquanto caminhava uma noite,
Descendo a rua Bristol,
A multidão sobre o calçamento
Era campo de trigo colhido.

E sob o rio transbordante (1)
Ouvi o amante cantar
À sombra do arco da estrada de ferro:
“O amor não tem fim.

“Te amarei, querida, te amarei
Até China e África se encontrarem,
E o rio saltar a montanha
E o salmão cantar na rua,

“Te amarei até o oceano
Estar recoberto e condenado a secar
E as sete estrelas grasnarem
Como gansos sobre o céu.

“Os anos correrão feito coelhos,
Em meus braços, carrego
A Flor da Idade,
E o primeiro amor do mundo”.

Porém, todos os relógios da cidade
Zumbem e badalam:
“Oh, não se engane,
Não conquistarás o Tempo. (2)

“Na toca do pesadelo
Onde a justiça está nua,
O Tempo observa das sombras
E ri do seu beijo.

“Na dor e na inquietação
Lentamente a vida escapa,
E o tempo terá sua recompensa
a-gora ou a-manhã

“Em muitos vales verdes
Escorre a neve pavorosa;
E o Tempo quebra o passo da dança
E a cúpula brilhante do escafandrista.

“Mergulha as mãos
Na água até o pulso;
Olhe fixo dentro do rio (3)
E veja o que perdeu.

“A geleira bate no armário,
O deserto suspira na cama,
E a fenda no copo de chá
Escancara a travessa para a terra dos mortos.

“Onde o mendigo esbanja promissórias
E o Gigante é João disfarçado,
E o Fracote é um Fanfarrão,
E Maria ficou fora da rima (4)

“Oh veja, veja no espelho,
Tua mais profunda agonia:
A vida permanece uma benção
Embora não sejas abençoado.

“Oh fique, fique na janela
Enquanto as lágrimas caem quentes;
Deves amar teu vizinho
E seu coração desonesto.”

É tarde, tarde na noite,
Os amantes se foram;
Os relógios cessaram seu zumbido
E o profundo rio corre.


AS I WALKED OUT ONE EVENING W. H. Auden
As I walked out one evening, / Walking down Bristol Street, / The crowds upon the pavement / Were fields of harvest wheat. / And down by the brimming river / I heard a lover sing / Under an arch of the railway: / 'Love has no ending. / 'I'll love you, dear, I'll love you / Till China and Africa meet, / And the river jumps over the mountain / And the salmon sing in the street, / 'I'll love you till the ocean / Is folded and hung up to dry / And the seven stars go squawking / Like geese about the sky. / 'The years shall run like rabbits, / For in my arms I hold / The Flower of the Ages, / And the first love of the world.' / But all the clocks in the city / Began to whirr and chime: / 'O let not Time deceive you, / You cannot conquer Time. / 'In the burrows of the Nightmare / Where Justice naked is, / Time watches from the shadow / And coughs when you would kiss. /
'In headaches and in worry / Vaguely life leaks away, / And Time will have his fancy /
To-morrow or to-day. / 'Into many a green valley / Drifts the appalling snow; /
Time breaks the threaded dances / And the diver's brilliant bow. / 'O plunge your hands in water, / Plunge them in up to the wrist; / Stare, stare in the basin / And wonder what you've missed. / 'The glacier knocks in the cupboard, / The desert sighs in the bed, / And the crack in the tea-cup opens / A lane to the land of the dead. / 'Where the beggars raffle the banknotes / And the Giant is enchanting to Jack, / And the Lily-white Boy is a Roarer, / And Jill goes down on her back. / 'O look, look in the mirror, / O look in your distress: / Life remains a blessing / Although you cannot bless. / 'O stand, stand at the window / As the tears scald and start; / You shall love your crooked neighbour / With your crooked heart.' / It was late, late in the evening, / The lovers they were gone; / The clocks had ceased their chiming, / And the deep river ran on.

From Another Time by W. H. Auden, published by Random House. Copyright © 1940 W. H. Auden, renewed by The Estate of W. H. Auden. Used by permission of Curtis Brown, Ltd.

Notas da Tradução:
(1) Rio Avon. Bristol foi construída ao redor do rio;
(2) Certamente, os sinos da St Mary Redcliffe ou da Catedral de Bristol;
(3) No original “basin”, traduzi para “rio”;
(4) O trecho onde a tradução é mais complicada, por citar contos de fadas [João e o Pé de Feijão] e cantigas ["Jack and Jill went up the hill / to fetch a pail of water / Jack fell down and broke his crown / And Jill came tumbling after." - Jack & Jill].

Essa é a segunda versão que faço do poema, ainda sem levar em consideração métrica ou rima. Fundamental nessa tradução: a pesquisa [sobretudo visual] da cidade de Bristol. É mais fácil de entender as referências ao rio e aos relógios.

Cassiano Viana, Fevereiro de 2009

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Cortázar: 25 anos sem o cronópio




Fevereiro/2009, publicado originalmente em Fevereiro de 2007 no site Portal Literal.

Para marcar os 25 anos sem Julio Cortázar, completados hoje, seu primeiro conto e seu último poema, em tradução do escritor maranhense Cassiano Viana.

[Confira também o artigo Um Elogio Ao Três e dois poemas de Cortázar feitos para duas obras do artista plástico Luís Tomasello.]

Publicado em La otra orilla (1945), o conto "O filho do vampiro" integra o capítulo "Plágios e traduções", no qual Cortázar brinca com seus autores e gêneros preferidos – Poe, Verne, e histórias de suspense, vampiros e ficção científica. É considerado o primeiro conto escrito e dado por finalizado por Cortázar, em 1937.

Já seu último poema foi escrito em 1983, na cama do hospital St. Lazare, em Paris. Nascido em Bruxelas e criado na Argentina, o autor morreria pouco tempo depois, na França, em 12 de fevereiro de 1984. "Negro el Diez" foi criado para uma série de desenhos do artista plástico Luis Tomasello. Durante o Ano Cortázar (2004), foi publicado em uma edição de luxo, de apenas 60 exemplares em serigrafia.

"Eu me emociono imaginando Julio escrevendo isso, tendo entregado os pontos e querendo morrer, porque a Carol (sua mulher) já estava morta. Vi essas ilustrações/serigrafias; parecem chapas de raio-x, radiografias bizarras. Contam que ele pegou várias delas e começou a autografar assim: 'É capaz de eu não passar de um mais um round, hermanito'", afirma o tradutor, que prepara uma biografia de Cortázar em parceria com a curitibana Susan Blum.

Não deixe de ouvir o escritor lendo algumas de suas estórias e capítulos de livros em seu site oficial.

Agora, aos textos.


O filho do vampiro
Julio Cortázar
Tradução: Cassiano Viana


Provavelmente todos os fantasmas sabiam que Duggu Van era um vampiro. Não o temiam, mas deixavam o caminho livre quando ele saia de sua tumba, precisamente à meia-noite, e entrava no antigo castelo à procura de seu alimento favorito.

O rosto de Duggu Van não era agradável, a quantidade de sangue ingerido desde sua suposta morte – no ano de 1060, pelas mãos de um menino, novo David armado de uma atiradeira-punhal – havia infiltrado em sua pele opaca a coloração mole das madeiras que ficam por muito tempo debaixo d'água. A única vida daquele rosto eram seus olhos. Olhos fixos na figura de Lady Vanda, adormecida como um bebê na cama que não conhecia mais que seu corpo leve.

Duggu Van caminhava sem fazer ruído, a mistura de vida e morte que formava seu coração se resolvia em qualidades inumanas. Vestido de azul escuro, acompanhado sempre por um silencioso séqüito de perfumes rançosos, o vampiro passeava pelas galerias do castelo buscando depósitos vivos de sangue. A indústria frigorífica o houvera indignado. Lady Vanda, adormecida com a mão sobre os olhos como em premonição do perigo, parecia um bibelô, um terreno propício ou uma cariátide (figura humana, geralmente feminina, esculpida em fachadas de edifícios da Grécia antiga. N. do T.).

Louvável costume de Duggu Van era o de nunca pensar antes da ação. Parado diante da cama, despindo com a levíssima mão carcomida o corpo da rítmica escultura, a sede de sangue começou a ceder.

Se os vampiros se apaixonam é coisa que na estória permanece oculta. Se houvesse meditado, a condição tradicional o haveria detido talvez à beira do amor, limitando-o ao sangue higiênico e vital, porém Lady Vanda não seria para ele uma mera vítima, destinada a uma série de coleções, a beleza irrompia de sua figura ausente lutando, exatamente no meio do espaço que separava ambos os corpos, com a fome.

Sem tempo para perplexidades, ingressou Duggu Van com voracidade estrepitosa no amor, o atroz despertar de Lady Vanda atrasando em um segundo as suas possibilidades de defesa e o falso sonho do desmaio houve de entregá-la, branca luz na noite, ao amante.

Fato é que, de madrugada e antes de ir embora, o vampiro não pode com sua vocação e fez uma pequena sangria no ombro da desvanecida castelhana. Mais tarde, ao pensar naquilo, Duggu Van sustentou para si que as sangrias resultavam muito recomendáveis para os desmaiados. Como em todos os seres, seu pensamento era menos nobre que o simples ato.

No castelo foram realizados congresso de médicos, perícias pouco agradáveis, sessões conjuratórias e anátemas, e, além do mais uma enfermeira inglesa que se chamava Miss Wilkinson e que bebia genebra com uma naturalidade emocionante. Lady Vanda esteve longo tempo entre a vida e a morte (sic). A hipótese de um pesadelo demasiado verdadeiro foi abatida frente a determinadas comprovações oculares; e, além do mais, quando transcorreu um lapso razoável, a dama teve a certeza de que estava grávida.

Portas fechadas com Yale (empresa especializada em trancas e fechaduras, cujos cadeados são famosos. N. do T.) haviam detido as tentativas de Duggu Van. O vampiro tinha que alimentar-se de crianças, de ovelhas, até de – horror! – porcos, mas todo o sangue lhe parecia água ao lado daquele de Lady Vanda. Uma simples associação, da qual não o livrara seu caráter de vampiro, exaltava em sua lembrança o gosto de sangue onde havia nadado, guloso, o peixe de sua língua. Inflexível sua tumba na passagem diurna, era preciso aguardar o canto do galo para pular, desfigurado, louco de fome. Não havia voltado a ver Lady Vanda, mas seus passos o levavam uma e outra vez à galeria terminada na redonda burla amarela de Yale. Duggu Van estava sensivelmente pior.

Pensava, às vezes – horizontal e úmido em seu ninho de pedra –, que talvez Lady Vanda teria um filho seu, o amor recrudescia então mais que a fome. Sonhava sua febre com violações de trincos, seqüestros, a construção de uma nova tumba matrimonial de ampla capacidade. O paludismo se escondia nele agora.

O filho crescia, quieto, em Lady Vanda. Uma tarde ouviu Miss Wilkinson gritar para sua senhora. A encontrou pálida, desolada, tocava o ventre coberto ao relento, e dizia:

– É tal qual o pai, é tal qual o pai.

Duggu Van, a ponto de morrer a morte dos vampiros (coisa que por razões compreensíveis o aterrorizava), tinha ainda a débil esperança de que seu filho, acaso possuidor de suas mesmas qualidades de sagacidade e destreza, maquinaria algo para trazer-lhe sua mãe algum dia. Lady Vanda ficava cada dia mais pálida e aérea. Os médicos maldiziam, os tônicos recuavam. E ela, repetindo sempre:

– É tal qual o pai, tal qual o pai.

Miss Wilkinson chegou à conclusão de que o pequeno vampiro sangrava a mãe com a mais refinada das crueldades. Quando os médicos se inteiraram da situação, falou-se de um aborto, plenamente justificável; porém Lady Vanda se negou, virando a cabeça como um ursinho de pelúcia, acariciando com a direita seu ventre ao relento.

– É tal qual o pai – disse. – Tal qual o pai.

O filho de Duggu Van crescia rapidamente. Não apenas ocupava a cavidade que a natureza lhe concedera, mas invadia o resto do corpo de Lady Vanda, que agora podia apenas falar, já não lhe restara sangue; e se havia algum, estava no corpo de seu filho. E quando veio o dia estabelecido para o alumbramento, os médicos disseram que aquele ia ser um parto estranho. Em número de quatro rodearam o leito da parturiente, aguardando que chegasse a meia-noite do trigésimo dia do nono mês do atentado de Duggu Van.

Na galeria, Miss Wilkinson viu aproximar-se uma sombra. Não gritou porque sabia que não ganharia nada com isso, o rosto de Duggu Van não era de provocar risos, a cor terrosa de seu rosto havia se transformando em um relevo uniforme e cardão, em vez de olhos, duas grandes interrogações lacrimejantes se balanceavam sob o cabelo endurecido.

– É absolutamente meu – disse o vampiro com a linguagem caprichosa de sua seita – e ninguém pode interpolar-se entre sua essência e meu carinho. Falava do filho; Miss Wilkinson acalmou-se.

Reunidos em um ângulo do leito, os médicos tratavam de demonstrar uns aos outros que não tinham medo. Passavam a admitir mudanças no corpo de Lady Vanda, sua pele repentinamente escura, as pernas que se enchiam de relevos musculares, o ventre que se achatava suavemente e, com uma naturalidade que parecia quase familiar, o sexo que se transformava no contrário, as mãos que não eram mais as de Lady Vanda. Os médicos sentiam um medo atroz.

Então, quando soaram as doze, o corpo que havia sido Lady Vanda – e era agora seu filho – se aprumou docemente no leito e estendeu os braços até a porta aberta. Duggu Van entrou no salão, passou frente os médicos sem vê-los e tocou as mãos de seu filho.

Os dois, olhando-se como se se conhecessem desde sempre, saíram pela janela, a cama ligeiramente desarrumada, os médicos balbuciando coisas em torno dela, contemplando sobre as mesas os instrumentos do ofício, a balança para pesar o recém-nascido e Miss Wilkinson na porta retorcendo-se as mãos e perguntando, perguntando, perguntando.



Negro, o 10
Julio Cortázar
Tradução: Cassiano Vianna.


1
Começa por não ser. Por ser não. O Caos é negro.
Como é negro o nada.


2
Nasce a claridade, o galo esmigalha o céu,
Inflam-se as cores
vaidosas.

Mas o negro se finca primitivo. Toda luz
no carvão se abisma, no basalto.


3
Les physiciens appellent corps noirs tous ceux
qui absorbent intégralement les radiations reçues.
E.U.

Para melhor lançá-los ao assalto
do dia. (Goya poderia dizê-lo).


4
Escavação no sangue, na memória,
o negro sabe a palavra, é a tormenta
raivosa dos ódios e do ciúmes:
Othello, o blackamoor, o mouro negro
sempre, para o lívido Yago.


5
Pai profundo, peixe abissal das origens,
retorno ao qual começo,
Estigia contra o sol e seus espelhos,
final das trocas,
última estrela das mutações,

palavra do silêncio.


6
Seu palácio noturno: o sonho, a pálpebra
sedosa guilhotina do pavão-real diurno
para que apenas as similitudes
desdobrem seus tapetes de roxos, púrpuras e de
óxidos,
harém do negro, esperma dos sonhos.


7
Diria que ele gosta que o aplaquem, o despertem,
o estendam em
lisas superfícies, como se faz aqui. Diria que ama
ser o
trampolim de onde saltam as cores, seu calado
silêncio.
Tudo o mais contra o negro; tudo é menos quando falta.


8
Cedes a estas metamorfoses que uma mão enamorada
cumpre em ti, te enches de ritmos, rachaduras, te
transformas em tabuleiro, relógio de lua, muralhas de brechas
abertas ao que observa sempre o outro lado,
máquinas de contar cifras fora das cifras, astrolábio
e guia de portos para terras nunca abordadas, mar
petrificado no que resvala o peixe do olhar.


9
Cavalo negro dos pesadelos, machado do
sacrifício, tinta de palavra escrita, pulmão
do que desenha, serigrafia da noite,
negro, o dez: roleta da morte, que se
joga vivendo.


10
Tua sombra espera atrás de toda luz.

[Julio Cortázar, inverno de 1983/ Cassiano Viana, verão de 2005.]


Disponível em: http://www.portalliteral.com.br/artigos/cortazar-25-anos-sem-o-cronopio

O Senhor dos Castelos e de Silvalandia

Por Cassiano Viana
Publicado em Agosto/2007 no site Cronópios

Nascido em Buenos Aires, o artista plástico Julio Hector Silva foi durante décadas o principal capista e diagramador da obra do escritor argentino Julio Cortázar, que completaria, no próximo 26 de agosto, 93 anos. Pelo menos três livros fundamentais da obra cortazariana devem muito à imaginação e criatividade de Julio Silva: A volta ao dia em oitenta mundos, Ultimo round (os dois livros-almanaques) e Silvalandia, este último, escrito em um processo inverso: os textos surgiram a partir das imagens e não o contrário.

“Fui aluno de Leopoldo Marechal [poeta, novelista, dramaturgo e ensaísta, um dos grandes escritores argentinos do século XX, autor de Adán Buenosayres, de 1948] quando este ainda era professor da escola primária. Eu tinha 11 anos e isso foi muito importante para mim. Tive outros encontros com "hombres remarcables": Juan Batlle Planas, Juan Andralis, Roberto Aizemberg e Jorge Kleiman, todos grandes pintores”, conta, de Turim, Julio Silva.

Julio foi embora de Buenos Aires em agosto de 1959. “Tinha 29 anos quando cheguei em Paris, torcendo para não voltar mais. No caminho para Paris, o barco parou no Rio e em São Paulo. Foi divertido, mas quase perco o barco pois para os brasileiros o tempo deve ser elástico como uma borracha”, recorda.

Pouco tempo após chegar em Paris, Silva foi conhecer o outro Julio. “Em setembro do mesmo ano fui visitar Cortázar em seu trabalho na Unesco, levando recados de amigos que haviam lido já alguns de seus primeiros livros. Dali, me convidou para conhecer sua casa”, conta. “Cortázar se queixava da maneira como editavam seus livros. Propus minha colaboração e assim começou a história”.

Aos 77 anos, vivendo entre Itália e Paris, Julio Silva continua pintando e organizando uma exposição em um castelo medieval de Malgrate (Villafranca, Lunigiana, Itália), de 4 a 31 de agosto.

“Para mim, o pintor é um escritor de imagens. O desenho é uma mulher sem maquiagem e a pintura a cosmética total. O desenho é o gesto veloz de sacar o lápis dos lábios e a pintura a demora em retorná-lo ao lugar de origem. As imagens são como mulheres que vem, se instalam e vão. Quando uma parte, é preciso recomeçar e partir para a conquista de uma outra, de uma nova companheira e adaptar-se aos seus caprichos, a sua maneira de viver, de amar. O desenho é meu exercício cotidiano. Não faço mais que responder ao máximo aos meus impulsos”, diz o artista plástico.

“Quando comecei, pintava como um velho. Para renascer é preciso desfazer-se dos atavismos culturais, de todos os freios que nos impedem de chegar ao lugar ideal. Não se chega por cansaço e sim por despojamento”, diz Julio Silva.

Disponível em: http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=2658

A maior contribuição de Julio Denis

Por Cassiano Viana
Publicado em Agosto/2007 no site Cronópios

“Los princípios eran entonces letra viva y no como hoy, reliquias a exhumar. No es que no existan hoy las causas. Pero siento que las causas capaces de convocar a la juventud tienen un carácter más virtual, y son representaciones un tanto abstractas, como la globalización, por ejemplo”. Sergio Ramirez

A grande obra de Julio Cortázar não foi Rayuela, “O jogo da amarelinha”, de 1963, e o labirinto brincalhão de sua estrutura narrativa; aquele Quadro de Orientação para Leitura, logo nas primeiras páginas do livro, suas Morellianas ou o estabelecimento de duplos em seus personagens/amantes: La Maga, Horácio Oliveira, Talita e Traveler (para ficar em apenas um dos vários enigmas): “I am he as you are he as you are me and we are all together”; ou aquilo que o professor Davi Arrigucci Jr, no fundamental “O escorpião encalacrado”, de 1990 – que segue o melhor estudo sobre o escritor argentino até agora, chamou de um romance “marcado pela busca intelectual do próprio romance”, brincadeira continuada em “62 Modelo para armar”, de 1968: personagens como peças de um xadrez ou quebra-cabeças ou bonecas matrioskas.

Para alguns estudiosos, apesar do livro não conter propostas políticas ou querer abolir injustiças, Amarelinha é uma novela de iniciação para jovens revolucionários. Contam que, em alguns países, na Nicarágua, por exemplo, estudantes largavam as universidades para se alistarem na guerrilha, na luta sandinista, após ler Amarelinha, o “salto no vazio” que permite reconstruir a identidade por meio do questionamento dos “sucessos do mundo” oferecidos descaradamente já naquela época e da angustia pela liberdade, a identificação do “ser” e principalmente do “não ser” e novas formas de condutas pessoais. “Diríamos que nasci para não aceitar as coisas como elas me são apresentadas”, dizia Julio.

Cortázar, que manteve, mesmo que aos trancos e barrancos – sabe-se como funcionam as ditaduras e a liberdade de expressão - uma relação fiel com a revolução cubana e buscou contribuir com a luta pelos direitos humanos e pela América Latina, levou seus compromissos e a guerra física para os domínios pessoais, e círculos literários e intelectuais. Ainda que a consciência política do argentino não esteja explicita em toda sua obra, sua tendência para a busca da libertação do espírito dos povos e do homem se projeta em várias de suas obras, no conto O perseguidor (em “As armas secretas”, de 1959), em “Fantomas contra los Vampiros Multinacionales”, de 1975, em “O livro de Manuel”, de 1978, por exemplo, mas, sobretudo em “História de Cronópios e Famas”, de 1962. Esta, para mim, sua grande referência e contribuição literária. (Sejamos sinceros: quantos haverão lido integralmente, tanto quanto ao Ulisses joyceano, ou ao Grande sertão, de Rosa, Amarelinha? Sei, no entanto, que questionar isso é gerar polêmica fácil e rasteira, tão ditatorial ou fama e que não importa quanto, logo, vamos ao que interessa).

O livro com o universo abarrotado de cronópios (estes “objetos verdes y húmedos, son unos seres desordenados y tímidos” – os artistas?), famas (com quem os cronópios mantêm uma relação dialética – os “burgueses”? ainda é possível usar isso?) e as sedentárias esperanças (criaturas intermediárias entre estas duas iniciais) tem o mesmo efeito que qualquer disco dos Beatles para alguém que esteja do lado oposto ao dos Malvados Azuis.

Cortázar, de certa forma, representa na literatura o que na música simbolizam, por exemplo, os Beatles: o sonho, a alegria, a esperança, a juventude, o viço. A idéia de que é possível não ser um escaravelho peludo e deixar que as coisas aconteçam na página como à sua maneira está acontecendo na rua ou na praça aqui ao lado, como pede a panamenha do conto Bix Beiderbecke.

Ad hoc, ad loc and quid pro quo...So little time,so much to know!, suspira Jeremy, o Nowhere man.

Para mim, os cronópios permanecem – mais que O jogo da amarelinha – a maior contribuição de Julio, não só para a literatura, pese o fato que o mundo parece estar mesmo implacavelmente dividido entre eles, os cronópios, as esperanças e os famas.

A força dos cronópios é a poesia, a rebeldia, o questionamento contra a padronização, o Grande Costume. Todos queremos tanto ser cronópios e repudiar aos famas. Com os cronópios, Cortázar nos proporcionou uma vida menos pesada, melhor, quase suportável. Ele, que dizia se sentir uma criança aprisionada em um corpo de adulto e gostava de usar a palavra brincar para classificar seu trabalho. Mesmo aquilo que poderia parecer um manual, suas instruções, para subir uma escada, para chorar, para matar formigas em Roma, para dar corda no relógio ou para entender três quadros famosos, são manifestos de anarquismo, influenciado pelo surrealismo que era Cortázar.

Love, Love, Love. Amor, revolução e literatura: estas, as bases da aventura cortaziana, caro leitor. Com os cronópios, Cortázar queria dizer (neste momento, posso muito bem estar incorrendo no mesmo erro daqueles que se vangloriaram de descobrir nas iniciais de “Lucy in the Sky with Diamonds”, o convite para uma viagem lisérgica): é possível ser assim, qualquer um, desconexo, um tanto quanto autista, distraído e trapalhão; a beleza reside também nessas características, e não só no carro do ano, no emprego estável, no curso de direito cursado apenas porque este pode representar o caminho natural para a tão sonhada vida nos tribunais. Os juízes de hoje sãos médicos, publicitários e bancários de ontem e o geneticista de amanhã: o exercício da prática e da aceitação da diferença. Universo lúdico ao qual Cortázar retornou ao menos duas outras vezes: em “Um tal Lucas” (de 1979, onde escreve sobre a Argentina, sobre os laços de família, sobre os destinos das explicações e dá conselhos sobre como lustrar sapatos) e em “Silvalandia” (de 1975, escrito a partir de pinturas do artista plástico Julio Silva, capista, diagramador oficial de seus livros e amigo íntimo).


“Los princípios eran entonces letra viva y no como hoy, reliquias a exhumar. No es que no existan hoy las causas. Pero siento que las causas capaces de convocar a la juventud tienen un carácter más virtual, y son representaciones un tanto abstractas, como la globalización, por ejemplo”.

Pátria, familia, ordem, sucesso profissional, os bons modos, nem tudo quer dizer calças bocas-de-sino, cabelos compridos, boinas de feltro, ou piercings, tatuagens, roupas rasgadas, coturnos. É possível estar alinhado com a própria rebeldia, usar terno e gravata. Acho que foi a Rita [Lee] que disse: em tempos como os nossos, a maior rebeldia é tentar ser honesto, ético, fiel, monogâmico, parar de beber e usar drogas. Ser careta. Uma brasa, mora?

Arf, Arf, he goes, a merry sight
Our little hairy friend
Arf, Arf, upon the lampost bright
Arfing round the bend.
Nice dog! Goo boy,
Waggie tail and beg,
Clever Nigel, jump for joy
Because we are putting you to sleep at three of the clock, Nigel.
[John Lennon, Good Dog Nigel]

Cortázar foi um homem comum, como naquela música do Caetano. Arcaico e moderno, sério e brincalhão. Duplo, no mínimo, capaz de ser perder em um aquário e trocar de lugar com axolotes, e ao mesmo tempo escrever minuciosos ensaios sobre John Keats e participar de um momento importante de nossa história contemporânea como foi o Tribunal Russel, criado por Bertrand Russel e Jean-Paul Sartre na década de 60 para julgar os crimes de guerra e denunciar as violações dos direitos humanos.

Tão virginiano quanto Paulo Leminiski (ambos do primeiro decanato, os separam apenas dois dias: Paulo nasceu no dia 24 e Cortázar no dia 26 de agosto) ou meus amigos Löis Lancaster e Susan Blum, assim como os Beatles e Che Guevara, Cortázar é um jovem que nunca envelhece e que, como diz a lenda, nunca deixou de crescer.

“Um dia de minha vida é sempre algo muito bonito, pois sou feliz de estar vivo. Não tenho nenhuma intenção em morrer, tenho a impressão de que sou imortal. Sei que não o sou, mas a idéia da morte não me molesta e tampouco tenho medo. Nego-lhe a existência, logo, isso me ajuda a viver de uma maneira, como posso dizer, sob o sol, solar. Sou contente por estar vivo e, além do mais, há algo que poucos levam em consideração. Creio que é um prodígio maravilhoso que todos nós sejamos seres humanos, que estejamos no mais alto da escala zoológica, por um acaso puramente genético. Por que tu não és responsável por ser quem és. Todos nós viemos de uma longa cadeia genética, e quando vejo uma galinha ou uma mosca que também nasceu nessa mesma cadeia genética, me maravilho por ser um homem e não uma galinha. Eu sou um homem, com tudo de bom e de ruim que isso tem. E estou contente por ter uma consciência”.

A simplicidade e humanidade sem frescuras de um grande escritor. Esta, sua maior contribuição.

Disponível em: http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=2697

Com homens medíocres o que se pode fazer é um exército e não uma revolução

Cassiano Viana
Publicado em Abril/2006 no site Cronópios

Em janeiro de 1984, pouco antes de morrer, Julio Cortázar concedeu uma longa entrevista a Jean Montalbetti, publicada originalmente na revista Magazine littéraire. Trechos dessa entrevista foram publicados na Argentina, em 1996, no livro “Cortázar inédito – um tal Julio Denis”, de Jorge Prado Roo, de 1996.

Na semana passada, recebi de Susan Blum, que invariavelmente me deixa lisonjeado com sua generosidade, uma xerox do livro. Em cambio, vejamos se consigo multiplicar a gentileza, traduzindo e publicando aqui alguns trechos da tal.

Tenho sempre dez anos
Julio Cortázar, entrevista a Jean Montalbetti (Magazine littéraire, França, janeiro de 1984)

Senhor Cortazar, alguma vez o surpreenderam as imagens que os demais lhe devolvem de si mesmo?

São tantas e tão diferentes. No entanto, há uma que se impõe sobre as outras: a do escritor de prestígio, o que na América Latina chamamos “mestre”. É um termo que me aborrece muitíssimo. Me chamam de mestre enquanto eu mesmo preferia seguir me imaginando, até o dia de minha morte, como um simples diletante da literatura. Sinto grande admiração pelos escritores profissionais, porém, no que me diz respeito, a literatura sempre foi e será um exercício lúdico.

Dou-me conta agora de que em mim há aspectos que podem parecer contraditórios. Por exemplo, alguns críticos e leitores, geralmente gente séria, se surpreendem com o amor pelo boxe: o vêem como um paradoxo em um escritor que julgam muito refinado. Para mim, no entanto, o boxe – obviamente quando praticado em um certo nível – possui lances estéticos de grande beleza. Também existem aquele que se maravilham de que prefira viver na cidade, que goste de caminhar. E os que consideram pouco sério que eu passe horas inteiras nos bares acompanhados pelos amigos. No entanto, tudo isso é parte de mim. Preciso muito desse contato com os demais, ainda que defenda minha solidão. Por exemplo: não gosto das multidões. Sinto-me descontente com elas, incluindo aqui quando se trata de gente com a que compartilho ideais e lutas políticas, como é o caso de Nicarágua e Cuba.

Quer dizer que o violenta ter que falar a multidões?

Sim, é um esforço. A verdade é que apenas me sinto eu mesmo quando estou em casa, fazendo o que gosto.

Quem o observa tem a sensação de que o senhor fez todo o possível para conservar seu universo infantil...

Não fiz absolutamente nada. Esse universo se manteve em mim espontaneamente. Talvez tenha algo de retardado. O que alguém poderia julgar uma anomalia, no entanto, acredito que a perda da infância tenha um peso notável no que tenho escrito.

Os críticos dizem que em meus contos e novelas as crianças são descritas como crianças, não como é a espécie de pequenos monstros que os adultos fabricam quando crêem que falam dos pequenos. Se minha versão da infância é legítima, é porque falo como uma criança. Sempre tenho dez anos.

No senhor há também uma atitude típica dos adolescentes: estar sempre em tensão, sempre à espera do imprevisto. De algum modo, sempre disposto a recomeçar do zero.

Pode ser que esse seja um gesto tipicamente adolescente. É que sempre me ocorreu por em dúvida o que as pessoas assumiam como definitivo. Freqüentemente descubro que muitas idéias, muitas regras de comportamento me resultam completamente descartáveis. Estive sempre em busca do extraordinário, dos interstícios. Quando comecei a escrever, o fiz baseado nesses interstícios de que falo...Isto é o que dá a meus livros o caráter fantástico.

O senhor escreveu “que extraordinária sorte esta de ser sul-americano, sobretudo argentino, e não se sentir obrigado a escrever seriamente, ser sério, sentar diante da máquina de escrever com os sapatos lustrados e uma noção sepulcral acerca da gravidade do momento”. Para o senhor, o jogo está ligado necessariamente ao não-sério?

Acontece que, em linhas gerais, encontro a literatura latino-americana demasiado séria, porque parece querer demonstrar que a comunicação deve fazer-se do modo mais direto possível, dando “toda a importância que tem”. Assim, a noção de importância se identifica com a de seriedade. Diria-se que para muitos desses escritores, o feito de expressar uma idéia ou um ponto de vista com ironia ou com uma dose de humor diminui a carga comunicativa. Não estou em nada de acordo com isso. A literatura inglesa demonstrou, por exemplo, que a comunicação é muito mais eficaz quando se logra falar das coisas mais graves apelando para jogos de palavras.

Qual é o poder revolucionário do escritor?

Este, desgraçadamente foi reduzido, todavia ainda existe. Os românticos acreditavam que o poeta tinha o poder de transformar a vida dos povos. A Shelley ocorreu regar as costas da Inglaterra e da França de globos cheios de proclamas. Pensava que ao lê-las, toda França se elevaria. Shelley era um ingênuo. Além do mais é necessário ter em conta o credo revolucionário da época. Ë por isso que algumas revoluções fracassam, se transformam em burocráticas, porque o homem não mudou. Pelo contrário, se fez ainda mais medíocre. E com homens medíocres o que se pode fazer é um exército e não uma revolução. Porém, creio que a literatura está se abrindo caminhos, forças capazes de produzir uma mudança nas mentalidades e de estimular uma reflexão adequada.

Originalmente publicado: em ROO, Jorge Prado. Cortazar inédito – um tal Julio Denis. Grupo editor ImagenArte, Argentina, 1969. Tradução: Cassiano Viana. Abril/2006.

Disponível em: http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=1238

Como se fosse o primeiro encontro

Cassiano Viana (Texto Publicado em julho de 2006) “Sueño con la novela y es un sueño recurrente y me la entregan fresquita, recién salida de la imprenta, y yo tomo el libro, mi libro, y lo hojeo y lo leo por partes y lo encuentro clarísimo, coherente, inteligente, y no me asombra para nada que esté conformado por puras formas geométricas. Ni una letra, ni una palabra, pero en el sueño tomo mi libro y lo leo y sé que es perfecto”. JULIO CORTÁZAR O primeiro livro que li de Cortázar foi Histórias de cronópios e de famas (1962). Era 1988, eu tinha 15 anos e confesso que levei pelo menos outros dez para finalmente desistir de tentar entendê-los, esses seres verdes que flutuam no ar quando se está embutido numa poltrona de teatro e Louis irá surgir de um momento para o outro. Para mim, os cronópios permanecem – mais que O jogo da amarelinha (1963) – a maior contribuição de Julio, não só para a literatura, pese o fato que o mundo parece estar mesmo implacavelmente dividido entre eles, os cronópios, as esperanças e os famas. A força dos cronópios é a poesia, a rebeldia, o questionamento contra a padronização, o Grande Costume. Todos queremos tanto ser cronópios e repudiar aos famas. Com os cronópios, Cortázar nos proporcionou uma vida menos pesada, melhor, quase suportável. Ele, que dizia se sentir uma criança aprisionada em um corpo de adulto e gostava de usar a palavra brincar para classificar seu trabalho. Mesmo aquilo que poderia parecer um manual, suas instruções, para subir uma escada, para chorar, para matar formigas em Roma, para dar corda no relógio ou para entender três quadros famosos, são manifestos de anarquismo, influenciado pelo surrealismo que era Cortázar. E o que dizer de Amarelinha, a busca pelo leitor participativo, além do que já foi dito e está escrito por aí? Gosto sobretudo de contos como “Grafiti”, de Queremos tanto a Glenda (1980) “Aí, mas onde, como”, de Octaedro (1977) e dos textos incluídos em seus álbuns-almanaques La vuelta el día en ochenta mundos (1967) e Ultimo round (1971), que, ao que parece, finalmente surgirão para o leitor brasileiro, ainda neste ano. Relatos onde Julio supera Borges, por exemplo (no sentido histórico e não no competitivo) no tocante ao fantástico, para ele qualquer coisa simples, algo que pode acontecer em plena realidade cotidiana, a indicação súbita de que à margem das leis aristotélicas e da nossa mente racional, existem mecanismos perfeitamente validos, vigentes e que nosso cérebro não capta. Cortázar, de certa forma, para mim representa na literatura o que na música simbolizam, por exemplo, os Beatles: o sonho, a alegria, a esperança, a juventude, o viço. A idéia de que é possível não ser um escaravelho peludo e deixar que as coisas aconteçam na página como à sua maneira está acontecendo na rua ou na praça aqui ao lado, como pede a panamenha do conto Bix Beiderbecke, esse relato inacabado escrito em 1984, pouco antes de sua morte e somente publicado em 2003 na Espanha, no primeiro volume de suas Obras Completas (nove tomos de mais de mil páginas, organizados por Saul Yurkievich, amigo e herdeiro, e publicado pela editora Galáxia Gutemberg/Circulo de Lectores). Escrito em primeira pessoa, o conto relata o despertar e as aventuras sexuais de uma panamenha que está convencida de viver uma relação mágica, essencialmente erótica e musical, com o famoso trompetista Leon Bix Beiderbecke, uma lenda do jazz dos anos 20, mesmo que décadas os separem. 47 anos separam “Bix Beiderbecke” de “El hijo del vampiro”, seu primeiro conto, de 1937. É preciso dizer que ele está aqui, não só nas prateleiras de livros, na desordem da mesa, nos textos espalhados pelo chão do quarto, nesse disco de jazz que ouço enquanto escrevo. Há pelo menos dois anos – oficialmente - não leio quase nada além de suas cartas, biografias, livros, traduzidos ou não no país, escrevendo sua biografia. Ainda levaremos muitos anos e muitos livros para chegar a entender e definir a imensidão da obra que Julio deixou não somente para a literatura de nosso tempo, mas em nossos hábitos de leitores, na percepção do texto, em nossa inevitável necessidade de associar a literatura e a vida, a escrita e o homem. Ele que sonhava nos últimos anos de sua vida com uma novela onde não haveria letras nem palavras e que, no entanto, era claríssimo, coerente, inteligente, perfeito.

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Por uma visão menos padronizada da realidade



É difícil acordar às quinze para as quatro da manhã quando há em seu quarto uma água-viva no teto se espalhando, brincando com as paredes, mesmo que gentilmente desapareça quando você, nada gentil, acende um cigarro, quero, ou deveria dizer, as luzes. Sim! Julio Cortázar, não te esqueci, e pode aguardar suas traduções e biografia. Pero, no entanto, este agora é um outro momento, das paredes brancas, de apagar o verde e o roxo dos lugares para dar espaço a uma nova vida e outros assuntos. As viagens e as oportunidades neste ano serão muitas, Houston, Buenos Aires, Madrid, Paris, Lisboa, quem sabe Calgary, no Canadá. Era uma vez o rock progressivo. Não consigo entender como uma banda de rock progressivo fantástica como o Genesis, pós-Peter Gabriel, início dos anos 70, de A Trick of the Tail e Wind and Wuthering, sempre com grande bateristas, Bill Bruford, acabado de sair do King Crimson, Chester Thompson, do Weather Report e de Frank Zappa, e o próprio Phil Collins, se transformou na que era ontem, ali, na década de 80 e 90. Olá, eu também sou Oliveira, Jocy, mas provavelmente nossas famílias não possuem nenhum laço ou vínculo, nossas vidas, nenhum traço em comum até agora, quando, ás quatro da manhã, leio o seu livro e aquela estória da mulher em estado de transe mediúnico que sobe ao palco para dar um passe na orquestra. Ou isso de lançar ao mar um piano Steinway como ícone de uma alta cultura submergindo. As idéias, imagens e páginas me catapultam da cama para escrever esse imerso bloco de notas. E tudo isso, sem contar meus pensamentos em Elisa, Laura e os móveis que – finalmente – compramos ontem e devem chegar na sexta-feira. Agora, queremos saber como vamos acomodá-los junto à bateria, pensamento este que tenho ainda vendo as medusas à minha frente, brincando zombeteiras na parede: é engraçado pensar que o tipo de objeto em lugares privilegiados em uma casa reflete (pode ser) a importância que se dá em determinados tempos à um rádio, à um televisor, ao computador. É engraçado pensar na família para qual um simples eletrodoméstico – tal qual um liquidificador, ou quem sabe uma geladeira – possa ser colocado no epicentro da casa, feito principal ornamento e alçado à qualidade de totem magnífico. Laura e os estranhos bichos de pelúcia que compro a cada viagem: uma girafa de pescoço minúsculo, um cavalo de pernas longuíssimas, o elefante roxo e sua tromba gigante, o macaco de orelhas desproporcionais e por aí vamos. Quem sabe assim ela possa adquirir uma visão menos padronizada da realidade e consiga valorizar às diferenças, com o mínimo de estranhamento. E agora, novamente ao sono (mesmo guardado há tanto tempo já, um macaco gigante irá surgir na janela antes mesmo que eu possa terminar de escrever estas últimas palavras. Eu sei).