quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Cortázar: 25 anos sem o cronópio




Fevereiro/2009, publicado originalmente em Fevereiro de 2007 no site Portal Literal.

Para marcar os 25 anos sem Julio Cortázar, completados hoje, seu primeiro conto e seu último poema, em tradução do escritor maranhense Cassiano Viana.

[Confira também o artigo Um Elogio Ao Três e dois poemas de Cortázar feitos para duas obras do artista plástico Luís Tomasello.]

Publicado em La otra orilla (1945), o conto "O filho do vampiro" integra o capítulo "Plágios e traduções", no qual Cortázar brinca com seus autores e gêneros preferidos – Poe, Verne, e histórias de suspense, vampiros e ficção científica. É considerado o primeiro conto escrito e dado por finalizado por Cortázar, em 1937.

Já seu último poema foi escrito em 1983, na cama do hospital St. Lazare, em Paris. Nascido em Bruxelas e criado na Argentina, o autor morreria pouco tempo depois, na França, em 12 de fevereiro de 1984. "Negro el Diez" foi criado para uma série de desenhos do artista plástico Luis Tomasello. Durante o Ano Cortázar (2004), foi publicado em uma edição de luxo, de apenas 60 exemplares em serigrafia.

"Eu me emociono imaginando Julio escrevendo isso, tendo entregado os pontos e querendo morrer, porque a Carol (sua mulher) já estava morta. Vi essas ilustrações/serigrafias; parecem chapas de raio-x, radiografias bizarras. Contam que ele pegou várias delas e começou a autografar assim: 'É capaz de eu não passar de um mais um round, hermanito'", afirma o tradutor, que prepara uma biografia de Cortázar em parceria com a curitibana Susan Blum.

Não deixe de ouvir o escritor lendo algumas de suas estórias e capítulos de livros em seu site oficial.

Agora, aos textos.


O filho do vampiro
Julio Cortázar
Tradução: Cassiano Viana


Provavelmente todos os fantasmas sabiam que Duggu Van era um vampiro. Não o temiam, mas deixavam o caminho livre quando ele saia de sua tumba, precisamente à meia-noite, e entrava no antigo castelo à procura de seu alimento favorito.

O rosto de Duggu Van não era agradável, a quantidade de sangue ingerido desde sua suposta morte – no ano de 1060, pelas mãos de um menino, novo David armado de uma atiradeira-punhal – havia infiltrado em sua pele opaca a coloração mole das madeiras que ficam por muito tempo debaixo d'água. A única vida daquele rosto eram seus olhos. Olhos fixos na figura de Lady Vanda, adormecida como um bebê na cama que não conhecia mais que seu corpo leve.

Duggu Van caminhava sem fazer ruído, a mistura de vida e morte que formava seu coração se resolvia em qualidades inumanas. Vestido de azul escuro, acompanhado sempre por um silencioso séqüito de perfumes rançosos, o vampiro passeava pelas galerias do castelo buscando depósitos vivos de sangue. A indústria frigorífica o houvera indignado. Lady Vanda, adormecida com a mão sobre os olhos como em premonição do perigo, parecia um bibelô, um terreno propício ou uma cariátide (figura humana, geralmente feminina, esculpida em fachadas de edifícios da Grécia antiga. N. do T.).

Louvável costume de Duggu Van era o de nunca pensar antes da ação. Parado diante da cama, despindo com a levíssima mão carcomida o corpo da rítmica escultura, a sede de sangue começou a ceder.

Se os vampiros se apaixonam é coisa que na estória permanece oculta. Se houvesse meditado, a condição tradicional o haveria detido talvez à beira do amor, limitando-o ao sangue higiênico e vital, porém Lady Vanda não seria para ele uma mera vítima, destinada a uma série de coleções, a beleza irrompia de sua figura ausente lutando, exatamente no meio do espaço que separava ambos os corpos, com a fome.

Sem tempo para perplexidades, ingressou Duggu Van com voracidade estrepitosa no amor, o atroz despertar de Lady Vanda atrasando em um segundo as suas possibilidades de defesa e o falso sonho do desmaio houve de entregá-la, branca luz na noite, ao amante.

Fato é que, de madrugada e antes de ir embora, o vampiro não pode com sua vocação e fez uma pequena sangria no ombro da desvanecida castelhana. Mais tarde, ao pensar naquilo, Duggu Van sustentou para si que as sangrias resultavam muito recomendáveis para os desmaiados. Como em todos os seres, seu pensamento era menos nobre que o simples ato.

No castelo foram realizados congresso de médicos, perícias pouco agradáveis, sessões conjuratórias e anátemas, e, além do mais uma enfermeira inglesa que se chamava Miss Wilkinson e que bebia genebra com uma naturalidade emocionante. Lady Vanda esteve longo tempo entre a vida e a morte (sic). A hipótese de um pesadelo demasiado verdadeiro foi abatida frente a determinadas comprovações oculares; e, além do mais, quando transcorreu um lapso razoável, a dama teve a certeza de que estava grávida.

Portas fechadas com Yale (empresa especializada em trancas e fechaduras, cujos cadeados são famosos. N. do T.) haviam detido as tentativas de Duggu Van. O vampiro tinha que alimentar-se de crianças, de ovelhas, até de – horror! – porcos, mas todo o sangue lhe parecia água ao lado daquele de Lady Vanda. Uma simples associação, da qual não o livrara seu caráter de vampiro, exaltava em sua lembrança o gosto de sangue onde havia nadado, guloso, o peixe de sua língua. Inflexível sua tumba na passagem diurna, era preciso aguardar o canto do galo para pular, desfigurado, louco de fome. Não havia voltado a ver Lady Vanda, mas seus passos o levavam uma e outra vez à galeria terminada na redonda burla amarela de Yale. Duggu Van estava sensivelmente pior.

Pensava, às vezes – horizontal e úmido em seu ninho de pedra –, que talvez Lady Vanda teria um filho seu, o amor recrudescia então mais que a fome. Sonhava sua febre com violações de trincos, seqüestros, a construção de uma nova tumba matrimonial de ampla capacidade. O paludismo se escondia nele agora.

O filho crescia, quieto, em Lady Vanda. Uma tarde ouviu Miss Wilkinson gritar para sua senhora. A encontrou pálida, desolada, tocava o ventre coberto ao relento, e dizia:

– É tal qual o pai, é tal qual o pai.

Duggu Van, a ponto de morrer a morte dos vampiros (coisa que por razões compreensíveis o aterrorizava), tinha ainda a débil esperança de que seu filho, acaso possuidor de suas mesmas qualidades de sagacidade e destreza, maquinaria algo para trazer-lhe sua mãe algum dia. Lady Vanda ficava cada dia mais pálida e aérea. Os médicos maldiziam, os tônicos recuavam. E ela, repetindo sempre:

– É tal qual o pai, tal qual o pai.

Miss Wilkinson chegou à conclusão de que o pequeno vampiro sangrava a mãe com a mais refinada das crueldades. Quando os médicos se inteiraram da situação, falou-se de um aborto, plenamente justificável; porém Lady Vanda se negou, virando a cabeça como um ursinho de pelúcia, acariciando com a direita seu ventre ao relento.

– É tal qual o pai – disse. – Tal qual o pai.

O filho de Duggu Van crescia rapidamente. Não apenas ocupava a cavidade que a natureza lhe concedera, mas invadia o resto do corpo de Lady Vanda, que agora podia apenas falar, já não lhe restara sangue; e se havia algum, estava no corpo de seu filho. E quando veio o dia estabelecido para o alumbramento, os médicos disseram que aquele ia ser um parto estranho. Em número de quatro rodearam o leito da parturiente, aguardando que chegasse a meia-noite do trigésimo dia do nono mês do atentado de Duggu Van.

Na galeria, Miss Wilkinson viu aproximar-se uma sombra. Não gritou porque sabia que não ganharia nada com isso, o rosto de Duggu Van não era de provocar risos, a cor terrosa de seu rosto havia se transformando em um relevo uniforme e cardão, em vez de olhos, duas grandes interrogações lacrimejantes se balanceavam sob o cabelo endurecido.

– É absolutamente meu – disse o vampiro com a linguagem caprichosa de sua seita – e ninguém pode interpolar-se entre sua essência e meu carinho. Falava do filho; Miss Wilkinson acalmou-se.

Reunidos em um ângulo do leito, os médicos tratavam de demonstrar uns aos outros que não tinham medo. Passavam a admitir mudanças no corpo de Lady Vanda, sua pele repentinamente escura, as pernas que se enchiam de relevos musculares, o ventre que se achatava suavemente e, com uma naturalidade que parecia quase familiar, o sexo que se transformava no contrário, as mãos que não eram mais as de Lady Vanda. Os médicos sentiam um medo atroz.

Então, quando soaram as doze, o corpo que havia sido Lady Vanda – e era agora seu filho – se aprumou docemente no leito e estendeu os braços até a porta aberta. Duggu Van entrou no salão, passou frente os médicos sem vê-los e tocou as mãos de seu filho.

Os dois, olhando-se como se se conhecessem desde sempre, saíram pela janela, a cama ligeiramente desarrumada, os médicos balbuciando coisas em torno dela, contemplando sobre as mesas os instrumentos do ofício, a balança para pesar o recém-nascido e Miss Wilkinson na porta retorcendo-se as mãos e perguntando, perguntando, perguntando.



Negro, o 10
Julio Cortázar
Tradução: Cassiano Vianna.


1
Começa por não ser. Por ser não. O Caos é negro.
Como é negro o nada.


2
Nasce a claridade, o galo esmigalha o céu,
Inflam-se as cores
vaidosas.

Mas o negro se finca primitivo. Toda luz
no carvão se abisma, no basalto.


3
Les physiciens appellent corps noirs tous ceux
qui absorbent intégralement les radiations reçues.
E.U.

Para melhor lançá-los ao assalto
do dia. (Goya poderia dizê-lo).


4
Escavação no sangue, na memória,
o negro sabe a palavra, é a tormenta
raivosa dos ódios e do ciúmes:
Othello, o blackamoor, o mouro negro
sempre, para o lívido Yago.


5
Pai profundo, peixe abissal das origens,
retorno ao qual começo,
Estigia contra o sol e seus espelhos,
final das trocas,
última estrela das mutações,

palavra do silêncio.


6
Seu palácio noturno: o sonho, a pálpebra
sedosa guilhotina do pavão-real diurno
para que apenas as similitudes
desdobrem seus tapetes de roxos, púrpuras e de
óxidos,
harém do negro, esperma dos sonhos.


7
Diria que ele gosta que o aplaquem, o despertem,
o estendam em
lisas superfícies, como se faz aqui. Diria que ama
ser o
trampolim de onde saltam as cores, seu calado
silêncio.
Tudo o mais contra o negro; tudo é menos quando falta.


8
Cedes a estas metamorfoses que uma mão enamorada
cumpre em ti, te enches de ritmos, rachaduras, te
transformas em tabuleiro, relógio de lua, muralhas de brechas
abertas ao que observa sempre o outro lado,
máquinas de contar cifras fora das cifras, astrolábio
e guia de portos para terras nunca abordadas, mar
petrificado no que resvala o peixe do olhar.


9
Cavalo negro dos pesadelos, machado do
sacrifício, tinta de palavra escrita, pulmão
do que desenha, serigrafia da noite,
negro, o dez: roleta da morte, que se
joga vivendo.


10
Tua sombra espera atrás de toda luz.

[Julio Cortázar, inverno de 1983/ Cassiano Viana, verão de 2005.]


Disponível em: http://www.portalliteral.com.br/artigos/cortazar-25-anos-sem-o-cronopio

Nenhum comentário: