quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Como se fosse o primeiro encontro

Cassiano Viana (Texto Publicado em julho de 2006) “Sueño con la novela y es un sueño recurrente y me la entregan fresquita, recién salida de la imprenta, y yo tomo el libro, mi libro, y lo hojeo y lo leo por partes y lo encuentro clarísimo, coherente, inteligente, y no me asombra para nada que esté conformado por puras formas geométricas. Ni una letra, ni una palabra, pero en el sueño tomo mi libro y lo leo y sé que es perfecto”. JULIO CORTÁZAR O primeiro livro que li de Cortázar foi Histórias de cronópios e de famas (1962). Era 1988, eu tinha 15 anos e confesso que levei pelo menos outros dez para finalmente desistir de tentar entendê-los, esses seres verdes que flutuam no ar quando se está embutido numa poltrona de teatro e Louis irá surgir de um momento para o outro. Para mim, os cronópios permanecem – mais que O jogo da amarelinha (1963) – a maior contribuição de Julio, não só para a literatura, pese o fato que o mundo parece estar mesmo implacavelmente dividido entre eles, os cronópios, as esperanças e os famas. A força dos cronópios é a poesia, a rebeldia, o questionamento contra a padronização, o Grande Costume. Todos queremos tanto ser cronópios e repudiar aos famas. Com os cronópios, Cortázar nos proporcionou uma vida menos pesada, melhor, quase suportável. Ele, que dizia se sentir uma criança aprisionada em um corpo de adulto e gostava de usar a palavra brincar para classificar seu trabalho. Mesmo aquilo que poderia parecer um manual, suas instruções, para subir uma escada, para chorar, para matar formigas em Roma, para dar corda no relógio ou para entender três quadros famosos, são manifestos de anarquismo, influenciado pelo surrealismo que era Cortázar. E o que dizer de Amarelinha, a busca pelo leitor participativo, além do que já foi dito e está escrito por aí? Gosto sobretudo de contos como “Grafiti”, de Queremos tanto a Glenda (1980) “Aí, mas onde, como”, de Octaedro (1977) e dos textos incluídos em seus álbuns-almanaques La vuelta el día en ochenta mundos (1967) e Ultimo round (1971), que, ao que parece, finalmente surgirão para o leitor brasileiro, ainda neste ano. Relatos onde Julio supera Borges, por exemplo (no sentido histórico e não no competitivo) no tocante ao fantástico, para ele qualquer coisa simples, algo que pode acontecer em plena realidade cotidiana, a indicação súbita de que à margem das leis aristotélicas e da nossa mente racional, existem mecanismos perfeitamente validos, vigentes e que nosso cérebro não capta. Cortázar, de certa forma, para mim representa na literatura o que na música simbolizam, por exemplo, os Beatles: o sonho, a alegria, a esperança, a juventude, o viço. A idéia de que é possível não ser um escaravelho peludo e deixar que as coisas aconteçam na página como à sua maneira está acontecendo na rua ou na praça aqui ao lado, como pede a panamenha do conto Bix Beiderbecke, esse relato inacabado escrito em 1984, pouco antes de sua morte e somente publicado em 2003 na Espanha, no primeiro volume de suas Obras Completas (nove tomos de mais de mil páginas, organizados por Saul Yurkievich, amigo e herdeiro, e publicado pela editora Galáxia Gutemberg/Circulo de Lectores). Escrito em primeira pessoa, o conto relata o despertar e as aventuras sexuais de uma panamenha que está convencida de viver uma relação mágica, essencialmente erótica e musical, com o famoso trompetista Leon Bix Beiderbecke, uma lenda do jazz dos anos 20, mesmo que décadas os separem. 47 anos separam “Bix Beiderbecke” de “El hijo del vampiro”, seu primeiro conto, de 1937. É preciso dizer que ele está aqui, não só nas prateleiras de livros, na desordem da mesa, nos textos espalhados pelo chão do quarto, nesse disco de jazz que ouço enquanto escrevo. Há pelo menos dois anos – oficialmente - não leio quase nada além de suas cartas, biografias, livros, traduzidos ou não no país, escrevendo sua biografia. Ainda levaremos muitos anos e muitos livros para chegar a entender e definir a imensidão da obra que Julio deixou não somente para a literatura de nosso tempo, mas em nossos hábitos de leitores, na percepção do texto, em nossa inevitável necessidade de associar a literatura e a vida, a escrita e o homem. Ele que sonhava nos últimos anos de sua vida com uma novela onde não haveria letras nem palavras e que, no entanto, era claríssimo, coerente, inteligente, perfeito.

Nenhum comentário: