quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Com homens medíocres o que se pode fazer é um exército e não uma revolução

Cassiano Viana
Publicado em Abril/2006 no site Cronópios

Em janeiro de 1984, pouco antes de morrer, Julio Cortázar concedeu uma longa entrevista a Jean Montalbetti, publicada originalmente na revista Magazine littéraire. Trechos dessa entrevista foram publicados na Argentina, em 1996, no livro “Cortázar inédito – um tal Julio Denis”, de Jorge Prado Roo, de 1996.

Na semana passada, recebi de Susan Blum, que invariavelmente me deixa lisonjeado com sua generosidade, uma xerox do livro. Em cambio, vejamos se consigo multiplicar a gentileza, traduzindo e publicando aqui alguns trechos da tal.

Tenho sempre dez anos
Julio Cortázar, entrevista a Jean Montalbetti (Magazine littéraire, França, janeiro de 1984)

Senhor Cortazar, alguma vez o surpreenderam as imagens que os demais lhe devolvem de si mesmo?

São tantas e tão diferentes. No entanto, há uma que se impõe sobre as outras: a do escritor de prestígio, o que na América Latina chamamos “mestre”. É um termo que me aborrece muitíssimo. Me chamam de mestre enquanto eu mesmo preferia seguir me imaginando, até o dia de minha morte, como um simples diletante da literatura. Sinto grande admiração pelos escritores profissionais, porém, no que me diz respeito, a literatura sempre foi e será um exercício lúdico.

Dou-me conta agora de que em mim há aspectos que podem parecer contraditórios. Por exemplo, alguns críticos e leitores, geralmente gente séria, se surpreendem com o amor pelo boxe: o vêem como um paradoxo em um escritor que julgam muito refinado. Para mim, no entanto, o boxe – obviamente quando praticado em um certo nível – possui lances estéticos de grande beleza. Também existem aquele que se maravilham de que prefira viver na cidade, que goste de caminhar. E os que consideram pouco sério que eu passe horas inteiras nos bares acompanhados pelos amigos. No entanto, tudo isso é parte de mim. Preciso muito desse contato com os demais, ainda que defenda minha solidão. Por exemplo: não gosto das multidões. Sinto-me descontente com elas, incluindo aqui quando se trata de gente com a que compartilho ideais e lutas políticas, como é o caso de Nicarágua e Cuba.

Quer dizer que o violenta ter que falar a multidões?

Sim, é um esforço. A verdade é que apenas me sinto eu mesmo quando estou em casa, fazendo o que gosto.

Quem o observa tem a sensação de que o senhor fez todo o possível para conservar seu universo infantil...

Não fiz absolutamente nada. Esse universo se manteve em mim espontaneamente. Talvez tenha algo de retardado. O que alguém poderia julgar uma anomalia, no entanto, acredito que a perda da infância tenha um peso notável no que tenho escrito.

Os críticos dizem que em meus contos e novelas as crianças são descritas como crianças, não como é a espécie de pequenos monstros que os adultos fabricam quando crêem que falam dos pequenos. Se minha versão da infância é legítima, é porque falo como uma criança. Sempre tenho dez anos.

No senhor há também uma atitude típica dos adolescentes: estar sempre em tensão, sempre à espera do imprevisto. De algum modo, sempre disposto a recomeçar do zero.

Pode ser que esse seja um gesto tipicamente adolescente. É que sempre me ocorreu por em dúvida o que as pessoas assumiam como definitivo. Freqüentemente descubro que muitas idéias, muitas regras de comportamento me resultam completamente descartáveis. Estive sempre em busca do extraordinário, dos interstícios. Quando comecei a escrever, o fiz baseado nesses interstícios de que falo...Isto é o que dá a meus livros o caráter fantástico.

O senhor escreveu “que extraordinária sorte esta de ser sul-americano, sobretudo argentino, e não se sentir obrigado a escrever seriamente, ser sério, sentar diante da máquina de escrever com os sapatos lustrados e uma noção sepulcral acerca da gravidade do momento”. Para o senhor, o jogo está ligado necessariamente ao não-sério?

Acontece que, em linhas gerais, encontro a literatura latino-americana demasiado séria, porque parece querer demonstrar que a comunicação deve fazer-se do modo mais direto possível, dando “toda a importância que tem”. Assim, a noção de importância se identifica com a de seriedade. Diria-se que para muitos desses escritores, o feito de expressar uma idéia ou um ponto de vista com ironia ou com uma dose de humor diminui a carga comunicativa. Não estou em nada de acordo com isso. A literatura inglesa demonstrou, por exemplo, que a comunicação é muito mais eficaz quando se logra falar das coisas mais graves apelando para jogos de palavras.

Qual é o poder revolucionário do escritor?

Este, desgraçadamente foi reduzido, todavia ainda existe. Os românticos acreditavam que o poeta tinha o poder de transformar a vida dos povos. A Shelley ocorreu regar as costas da Inglaterra e da França de globos cheios de proclamas. Pensava que ao lê-las, toda França se elevaria. Shelley era um ingênuo. Além do mais é necessário ter em conta o credo revolucionário da época. Ë por isso que algumas revoluções fracassam, se transformam em burocráticas, porque o homem não mudou. Pelo contrário, se fez ainda mais medíocre. E com homens medíocres o que se pode fazer é um exército e não uma revolução. Porém, creio que a literatura está se abrindo caminhos, forças capazes de produzir uma mudança nas mentalidades e de estimular uma reflexão adequada.

Originalmente publicado: em ROO, Jorge Prado. Cortazar inédito – um tal Julio Denis. Grupo editor ImagenArte, Argentina, 1969. Tradução: Cassiano Viana. Abril/2006.

Disponível em: http://www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=1238

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